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Toda mudança de vida planejada e significativa exige um intenso trabalho psicológico, um processo que pode ser descrito como “sonhar a nova vida”. Não se trata dos sonhos que ocorrem durante o sono, mas de uma combinação de devaneios, imaginação e desejo.
A chegada de um filho, seja biológico ou adotivo, é um dos processos mais intensos desse tipo de transformação. Durante a gravidez ou o período de espera pela adoção, os pais começam a criar a ideia de serem pais. Descobrem-se nesse novo papel e constroem fantasias sobre como irão desempenhá-lo. Donald Winnicott descreve o sonho como uma construção de espaço psíquico, e a chegada de uma criança exige exatamente isso: a criação de novos espaços emocionais e psicológicos para acomodar a nova identidade que se forma.
Esse processo de sonhar também implica a construção de uma imagem do bebê. A gestação na mente acompanha a gestação no corpo ou, no caso da adoção, a expectativa emocional desse encontro. Durante esse período, os pais constroem uma representação do filho, atribuindo-lhe características físicas, traços de personalidade, estilo de vida, valores familiares e, muitas vezes, projeções de atributos ou conquistas que os próprios pais não alcançaram.
Os desejos e expectativas dos pais são uma peça central nessa construção do “bebê imaginado”, uma espécie de bebê ideal. É natural que esse novo ser seja aguardado como próximo da perfeição, o que alimenta um forte sentimento de encantamento e paixão. Essa idealização inicial desempenha um papel crucial, servindo como base emocional para que os pais se conectem ao bebê real.
No entanto, quando o bebê real apresenta características que divergem daquilo que foi idealizado – seja por questões físicas, comportamentais ou de outra natureza – ocorre uma ruptura no processo normal de construção e desconstrução da imagem idealizada. Se os pais insistem em interagir com o bebê imaginário, ignorando o bebê real, isso pode levar ao desenvolvimento de um “falso self”, onde a criança aprende a se moldar às expectativas dos outros, em detrimento da expressão de sua verdadeira individualidade.
É essencial que os pais enfrentem o luto pela perda do bebê idealizado. É importante compreender que o que se perdeu não foi o bebê, mas o projeto idealizado que sustentava o vínculo inicial. Esse luto é diferente de outros tipos de perdas, pois a criança permanece presente. O desafio dos pais é, então, lidar, cuidar e estabelecer um vínculo com a criança real.
Para isso, é fundamental a “construção de Eros”, que representa a energia de conexão e vínculo com o bebê real, diferente daquele “quase eu perfeito” que habitava o imaginário dos pais. Quanto mais flexível for a psique dos pais, mais rápido será o processo de dissolução das idealizações e a construção de uma nova energia de conexão. Por outro lado, quanto mais rígida for essa psique, mais longo e difícil será o caminho – e, em alguns casos, ele pode nunca ocorrer plenamente. Quando isso acontece, pode se formar um ciclo de rejeição, abandono, medo e culpa, trazendo consequências prejudiciais para o desenvolvimento emocional e a saúde mental tanto dos pais quanto da criança.
Vivenciar o luto e construir Eros são tarefas urgentes para os pais. Afinal, o filho ideal, assim como o ser humano ideal, não existe. O verdadeiro desafio está em acolher o bebê real, em toda a sua singularidade, e construir com ele uma relação de amor, respeito e conexão genuína.